sábado, 8 de dezembro de 2018

As vidas que ficaram para trás


Nas minhas veias corre o sangue de uma nômade. Confesso. Devo ter deixado muitos ciganos morrendo de inveja nos últimos 10 anos, com tantas mudanças de cidade e casa! Uma vez fiz um mapa astral e a astróloga cantou a pedra perfeita: "sua dificuldade é ficar", exatamente, ficar por muito tempo me envelhece, me corrói, tira a minha natureza de ser livre, curiosa e desbravadora. Mas ir... é muito fácil, junto tudo e vou, sem nem pensar duas vezes. Faz tempo que reflito sobre isso, até achei que seria um bom tema para um trabalho autoral independente: as muitas vidas que temos dentro de uma só, pois em cada cidade, em cada casa, você constrói uma vida diferente, até a disposição dos móveis nos modificam. 

Recentemente passei uma semana em Mato Grosso, estado querido que me abrigou pelos 10 anos mais intensos da minha vida. Intensos de trabalho, intensos de convívio com pessoas incríveis. Intensos de crescimento pessoal. Incrivelmente lá morei, em uma década, em "apenas" três casas. Depois que voltei pro sudeste morei em três cidades, no espaço também de 10 anos, e em seeeeete casas. Pergunta se meus móveis ainda estão inteiros? Capengando, igual a cigana mesmo, mas inteiros. 

Depois que me mudei de Mato Grosso voltei muitas vezes pois tive a sorte de conseguir alguns trabalhos lindos por lá, que pude fazer à distância, exceto o trabalho de pesquisa, que sempre foi feito in loco. Nessas minhas idas, por mais que fosse maravilhoso rever pessoas e  lugares, nunca mais me senti de lá. E é tão estranho, muitas vezes guardamos na memória um lugar que vivemos e mantemos as pessoas e locais intactos, como se tudo ficasse congelado depois que vamos embora. E voltar é um choque, é sempre um choque. Aquela padaria que você amava os bolinhos recheados foi demolida e construíram um prédio no lugar, os amigos da turma inseparável de antes não andam mais juntos, o fulano enriqueceu e ficou "se achando" e a fulana mais querida de todas foi embora também, alguns morreram, o lindo casal que todos amavam ver juntos, se separou. 
Aquele não é mais o seu lugar. O seu lugar ficou para trás, em outra vida.

Acumulamos vidas dentro de uma só, vidas passadas que, de certa forma, se perdem no presente e permanecem inalteradas apenas em dois locais encantados: nas lembranças e no encontro com os amigos, que nos dão acesso a viver um pedacinho do que passou. Como é bom relembrar coisas do passado com amigos que viveram as histórias com a gente, não é mesmo? Ai que delícia que é! Quem a gente amou e viveu coisas tão boas conosco são um convite a voltar, mas isso também tem prazo de validade, esses amigos também estão vivendo outra vida, com outras pessoas e em outros lugares. 

As pessoas mudam, a vida de todo mundo muda, o mundo material se recicla, se reinventa, acaba. Nós mudamos, mudamos muito e quantas e quantas vezes temos saudades de nós mesmos, daquelas outras vidas. Eu sinto uma saudade danada da Ana estudante, meio maluquetes, da Ana foca, dando furo para mais de metro nas reportagens (furo de erros, não de furo de reportagem... hahahaha), da Ana ousada que viajou para fora do país com a cara e a coragem, da Ana corajosa que foi morar com duas filhas lááááá onde o Judas perdeu as botas, sozinha. Nenhuma dessas "Anas" existe mais e não adianta eu voltar para nenhum dos lugares dessas outras vidas pois nunca irei reencontrá-las, a vida nunca mais será a mesma. Você pode até voltar, mas será outro tempo e outra realidade.

Louco isso, né? Tem vidas que não deixam saudade, vidas limitadas, de solidão, de angústia, fases ruins que passamos, que damos graças a Deus por terem ficado para trás, mas tem umas fases boas que... nossa! Eu daria todas as vidas em troca de vivê-las novamente. Talvez o que dê mais saudade seja a jovialidade que fomos perdendo com o tempo, as experiências novas, o arriscar uma conversa com um desconhecido que lá na frente se tornou melhor amigo, a coragem de tentar um novo emprego que te trouxe muitos ganhos profissionais... sentimentos que os anos roubam de nós, quando nos descuidamos. 

Talvez esse "insight"  não seja só uma viagem da minha cabeça e sirva para algo valioso, como um incentivo para construir agora uma vida que deixe saudade lá na frente. Cabe a nós isso, exclusivamente, não? E talvez esteja aí a beleza de parar e olhar, longamente, para todas as vidas que deixamos para trás. Todas elas nos mostram que tudo que foi feito e vivido com amor valeu à pena, porque no fim das contas, só o amor é e continua eterno. 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Desapegos


Em dezembro do ano passado fiz uma faxina gigantesca na minha casa, daquelas com total desapego e que nos deixam leves por dentro, sabe? Mexi em tanta coisa, guarda-roupa, armários de cozinha,  aquelas caixas com bilhetinhos e milhões de cartas da adolescência e armários do escritório, que ainda guardavam (pasmem!) provas da faculdade de jornalismo. Detalhe: esse ano faço 20 anos de formada!!! Apesar de tudo ter algum significado não tinham mais utilidade e ocupavam um espaço reservado para o novo que haveria de chegar. O que ainda tinha serventia e não desejo foi direcionado para outras missões, longe de mim, o restante foi quase tudo para o lixo. Uns 10 sacos de 100 litros. Mega desapego. 

Hoje lembrei dessa faxina e me assustei um pouco. Nossa, parece que foi ontem, e já faz um ano! E com isso comecei a lembrar de todos os desejos de bem para 2018, sinto ainda o frescor da esperança de que tudo entrasse nos eixos e desse certo no novo ano. Foi ontem! E quase nada do que esperei ou desejei aconteceu. 2018 foi muito ruim e ficou marcado pra mim como um ano de perdas significativas e muito dolorosas. Perdi um grande amor e com ele boa parte da auto estima, perdi duas casas e com elas os desejos e planejamentos que ficaram para trás, o aconchego preparado e perdido, o cantinho de paz feito com tanto carinho, desfeito. Mudanças. Sonhos interrompidos. Quantos recomeços! 

Nesse dezembro não pretendo faxinar. Não posso abrir mão de mais nada, já estou vazia o bastante. Será que eu acionei sem querer, no desapego do ano passado, o botão "delete all"? Acontece. A vida às vezes prefere desmoronar a casa inteira e começar tudo da base do que perder tempo com reformas. Eu sei que a gente precisa ter sonhos, metas, ter para onde ir,  saber onde se quer chegar, mas quando perdemos muitos sonhos parece que falta coragem para se arriscar de novo no mundo da imaginação. 

Essa não era pra ser uma postagem negativa e pensando bem, não é. É uma postagem da vida real. Um ano a gente ganha, ganha bastante, no outro a gente perde ou perde muito e a vida é assim, nunca previsível, mas sempre bonita do jeito que tem que ser. Perdas são dolorosas mas tem a missão de nos reconstruir. Não tenho a menor ideia do que virá, não pretendo planejar por enquanto, pretendo confiar que, embora dolorido, o desapego é muito necessário na vida pois em lugares muito cheios a boa sorte costuma não entrar. Então está tudo certo, a porta está aberta e o espaço bem vazio. 

Seja o que Deus quiser. 
Sempre é.